Olá! Esta tradução é de minha autoria,

realizada a partir de um trecho de um livro em domínio público.

Espero que gostem!

Assim que passarem cinco anos

Federico García Lorca

Tradução: Olívia Almeida

Lenda do Tempo

Personagens

JOVEM

VELHO

UM MENINO MORTO

UM GATO MORTO

EMPREGADO

PRIMEIRO AMIGO

SEGUNDO AMIGO

A DATILÓGRAFA

A NAMORADA

O MANEQUIM DO VESTIDO DA NAMORADA

O JOGADOR DE RUGBY

A EMPREGADA

O PAI DA NAMORADA

PALHAÇO

ARLEQUIM

GAROTA

MÁSCARAS E JOGADORES

Primeiro Ato

Biblioteca: O jovem está sentado. Veste um pijama azul. O Velho de paletó cinza, com barba branca e enormes óculos dourados, também está sentado.

JOVEM — Não me surpreende.

VELHO — Perdoe…

JOVEM — Sempre acontece o mesmo comigo.

VELHO — (Inquisitivo e amigável.) Verdade?

JOVEM — Sim.

VELHO — É que…

JOVEM — Lembro-me que…

VELHO — (Ri.) Sempre me lembro.

JOVEM — Eu…

VELHO — (Ofegante.) Continue…

JOVEM — Eu gardava os doces para comer depois.

VELHO — Depois? Verdade? Ficam mais gostosos. Eu também.

JOVEM — E lembro-me que um dia…

VELHO — (Interrompendo com veemência.) Eu gosto tanto da palavra lembrança. É uma palavra verde, rugosa. Jorra sem parar fios de água fria.

JOVEM — (Alegre e tentando se convencer.) Sim, sim, claro! O senhor tem toda a razão. É preciso lutar com toda a ideia de ruína, com esses terríveis descascados nas paredes. Muitas vezes me levantei à meia noite para arrancar as ervas daninhas do meu jardim. Não as quero em minha casa e nem quero móveis quebrados.

VELHO — Isso. Nem móveis quebrados porque há que lembrar, mas…

JOVEM — Mas as coisas vivas, ardendo em seu sangue, com todos seus perfis intactos.

VELHO — Muito bem! Ou seja (Baixando a voz), tem que lembrar, mas lembrar antes.

JOVEM — Antes?

VELHO — (Com discrição.) Sim, tem que lembrar para amanhã.

JOVEM — (Preocupado.) Para amanhã!

(Um relógio dá as 6. A Datilógrafa passa pela cena chorando em silêncio.)

VELHO — 6 horas.

JOVEM — Sim, 6 horas e com muito calor. (Levanta-se.) Está com céu de tempestade. Bonito. Cheio de nuvens cinzas…

VELHO — Então, você…? Eu fui um grande amigo dessa família. Principalmente do pai. Ele lida com astronomia. (Irônico.) Está bem. De astronomia, não? E ela?

JOVEM — Ela, eu a conheci pouco. Mas não importa. Eu acredito que gosta de mim.

VELHO — Certamente!

JOVEM — Foram para uma longa viagem. Eu quase fiquei feliz…

VELHO — O pai dela veio?

JOVEM — Nunca! Por agora, não pode ser… Por coisas que não são de se explicar, eu me casarei com ela… até que passem 5 anos.

VELHO — Muito bem! (Com alegria.)

JOVEM — (Sério.) Por que disse muito bem?

VELHO — Então… porque… é bonito isso? (Apontando para o quarto.)

JOVEM — Não.

VELHO — Não o angustia a hora da partida, os acontecimentos, o que há de chegar agora mesmo?…

JOVEM — Sim, sim. Não me fale sobre isso.

VELHO — O que acontece na rua?

JOVEM — Barulho, barulho sempre, poeira, calor, cheiros ruins. Me incomoda que as coisas da rua entrem na minha casa. (Escuta-se um longo gemido. Pausa). Juan fecha a janela.

(Um Empregado, que sutilmente anda pelas pontas dos pés, fecha a janela da sacada.)

VELHO — Ela… é muito jovem.

JOVEM — Muito jovem. Quinze anos!

VELHO — Não gosto dessa maneira de expressar. Quinze anos que ela viveu, que são ela mesma. Mas, por que não dizer que tem quinze neves, quinze ares, quinze crepúsculos?  Você não se atreve a fugir? A voar? A ampliar o seu amor por todo o céu?

JOVEM — (Senta-se e cobre o rosto com as mãos). Eu a quero muito!

VELHO — (De pé e com energia.) Ou dizer: tem quinze rosas, quinze asas, quinze grãos de areia. Não se atreve a concentrar e ferir seu amor dentro do peito?

JOVEM — Você quer me afastar dela. Mas eu já conheço seu procedimento. Basta observar rapidamente à palma da mão um inseto vivo, ou ver o mar uma tarde prestando atenção na forma de cada onda para que o rosto ou a dor que levamos no peito se desfaça em bolhas. Mas é porque eu estou e quero estar apaixonado, tão apaixonado como ela está por mim e, por isso, posso aguardar 5 anos, na espera de poder me envolver à noite com todo o mundo às escuras, suas tranças de luz ao redor do meu pescoço.

VELHO — Me permita te lembrar que a sua namorada… não tem tranças.

JOVEM — (Irritado.) Eu sei. Ela cortou sem a minha permissão, naturalmente, e isso… (Com angústia.) muda a sua imagem. (Energético.) Já sei que não tem tranças. (Quase furioso.) Por que você me lembrou? (Com tristeza.) Mas, nesses 5 anos, ela voltará a ter.

VELHO — (Entusiasmado.) E mais bonita do que nunca. Serão umas tranças…

JOVEM — São, são. (Com alegria.)

VELHO — São tranças com cujo perfume você pode viver sem pão e nem água.

JOVEM — (Levanta-se.) Penso tanto!

VELHO — Sonha tanto!

JOVEM — Como?

VELHO — Penso tanto que…

JOVEM — Que estou em carne viva. Tudo para dentro é como uma queimadura.

VELHO — (Entregando-lhe um copo.) Beba.

JOVEM — Obrigado! Se eu começo a pensar na garota, na minha menina…

VELHO — Diga minha namorada. Atreva-se!

JOVEM — Não.

VELHO — Mas por quê?

JOVEM — Namorada… você sabe, se digo namorada, já a vejo sem querer encoberta em um céu presa por enormes tranças de neve. Não, não é minha namorada. (Faz um gesto como se afastasse a imagem que quer captá-lo). É a minha menina, minha garotinha.

VELHO — Continue, continue.

JOVEM — Bem, se eu começar a pensar nela! Eu a desenho, eu a faço mover-se branca e viva, mas, de repente, quem muda o nariz ou quebra os dentes ou a transforma em outra pessoa maltrapilha que me passa pela cabeça, monstruosa, como se ela se olhasse num espelho de feira?

VELHO — Parece mentira que você diga “quem”! Muda ainda mais as coisas que temos diante dos nossos olhos do que as que vivem sem distância. A água que vem pelo rio, é completamente diferente da que se vai. E quem se lembra de um mapa exato da areia do deserto… ou um rosto de um amigo qualquer?

VELHO — Sim, sim. Ainda está mais vivo por dentro embora também mude. Veja você, a última vez que a vi, não podia olhar para ela muito perto, pois ela tinha duas rugazinhas na frente, como me incomodasse. Você entende? Preenchiam seu rosto inteiro, e a faziam parecer enrugada, como se tivesse sofrido muito. Tinha a necessidade de me separar para… enforcá-la! Esta é a palavra, no meu coração.

VELHO — Naquele momento que a viu velha, ela estava completamente entregue a você?

JOVEM — Sim.

VELHO — Completamente dominada por você?

JOVEM – Sim.

VELHO — (Exaltado.) Se naquele preciso instante ela lhe confessa que o enganou, que não o quer, as rugas lhe teriam convertido na rosa mais delicada do mundo?

JOVEM – (Exaltado.) Sim.

VELHO — E a teria amado mais precisamente por isso?

JOVEM – Sim, sim.

VELHO — Então? Ha ha ha!

JOVEM – Então… É muito difícil viver.

VELHO — Por isso, temos que voar de uma coisa para outra até nos perdermos. Se ela tem quinze anos, pode ter quinze crepúsculos ou quinze céus e vamos subir! Para ampliar! As coisas estão mais vivas aqui dentro do que lá fora, expostas ao ar ou à morte. Por isso, vamos a… a não ir… ou a esperar. Porque a outra coisa é morrer agora, e é mais bonito pensar que amanhã veremos os cem chifres de ouro com que levanta às nuvens o sol.

JOVEM – (Estendeu-lhe a mão.) Obrigada! Obrigada por tudo!

VELHO — Eu voltarei aqui!