Olá! Esta tradução é de minha autoria,
realizada a partir de um trecho de um livro em domínio público.
Espero que gostem!
Edgar Allan Poe
Tradução: Olívia Almeida
Não espero e nem peço que ninguém acredite no estranho relato que vou escrever. Estaria completamente louco se o esperasse, pois meus sentidos rejeitam suas evidências. Mas não estou louco e sei perfeitamente que isso não é um sonho. Amanhã eu vou morrer, e quero, de alguma forma, aliviar a minha alma. Minha intenção imediata consiste em divulgar de forma clara, simples e sem comentários, uma série de episódios domésticos. As consequências desses episódios têm me aterrorizado, torturado e por fim, destruído. Mas não vou explicá-los. Se para mim foram horríveis, para os outros serão menos assustadores do que são. No futuro, talvez apareça alguém cuja inteligência reduza minhas fantasias a lugares comuns, uma inteligência mais calma, mais lógica e muito menos estimulável que a minha, capaz de ver, nas circunstâncias que tenho medo de descrever, uma simples sucessão de causas e efeitos.
Desde criança destaquei-me pela doçura e bondade de caráter. A bondade do meu coração era tão grande, que cheguei a ser objeto de chacota para meus colegas. Eu gostava, de forma singular, dos animais e meus pais permitiam que eu tivesse vários. Passava a maior parte do meu tempo com eles e nunca me sentia tão feliz, quando os alimentava e os acariciava. Esta característica do meu caráter crescia comigo e, quando fiquei mais velho, proporcionou-me um dos meus melhores prazeres. Aqueles que já gostaram de um cachorro fiel e inteligente, não precisam se preocupar em explicar a natureza ou a intensidade da satisfação que recebem. Há algo no amor generoso e dedicado de um animal que chega direto ao coração de quem já experimentou muitas vezes a falsa amizade e a frágil fidelidade do Homem.
Casei-me jovem e tive a alegria de a minha esposa gostar do mesmo que eu. Quando percebeu que eu gostava de animais de estimação, não perdeu a oportunidade de dar-me os mais amigáveis. Tivemos pássaros, um pequeno peixe dourado, um lindo cachorro, coelhos, um macaquinho e um gato.
Este último era um lindo animal, bem grande, completamente preto e de uma inteligência sagaz. Quando se referia à sua inteligência, a minha mulher, que no fundo era bastante supersticiosa, contava com frequência a antiga crença popular de que todos os gatos pretos eram bruxas disfarçadas. Não quero dizer que eu acredito nisso, só falei, pois acabo de recordar.
Pluto – era assim que se chamava – era o meu bicho favorito e meu amigo. Só eu o alimentava e, em casa, ele me seguia por todos os cantos. Tive dificuldade para impedi-lo de me seguir pelas ruas.
Nossa amizade durou vários anos, no decorrer dos quais meu temperamento e caráter, por causa da diabólica Intemperança (e fico vermelho ao confessar), haviam se alterado radicalmente. Dia a dia fui ficando mais irritado, mal-humorado e indiferente aos sentimentos dos outros. Cheguei, inclusive, a usar palavras duras com minha esposa e acabei por recorrer à violência física. Obviamente, meus animais de estimação também sentiram a minha mudança de caráter.
Não só os negligenciei, mas também os magoei. No entanto, em relação ao Pluto, senti o suficiente respeito para abster-me de maltratá-lo, como fiz com os coelhos, com o macaco e até com o cachorro, quando, por coincidência ou afeto, cruzavam o meu caminho. Mas a minha doença piorava, pois qual doença pode se comparar com o álcool? E, por fim, até o Pluto, que já começava a ficar velho e, portanto, irritável, começou a sofrer as consequências do meu mal humor.
Uma noite, quando voltava para casa completamente bêbado, depois de uma das minhas correrias pelo centro da cidade, pareceu que o gato evitava a minha presença. Eu o agarrei e, assustado com a minha violência, mordeu-me levemente a mão. Instantaneamente uma fúria diabólica apoderou-se de mim e eu não sabia mais o que estava fazendo. Foi como se a minha alma se separasse do meu corpo em um golpe, e uma maldade mais do que diabólica, alimentada pelo gim, estremeceu cada fibra do meu ser. Tirei do bolso do meu colete um canivete, abri-o e, enquanto segurava o pobre gato pelo pescoço, intencionalmente arranquei um olho. Fico mais vermelho do que um tomate, sinto vergonha, tremo enquanto escrevo essa tamanha atrocidade. Imperdoável.
Quando minha razão voltou pela manhã, quando o sono havia dissipado os vapores do caos noturno, senti que o horror se misturava com o remorso diante do crime do qual era culpado, mas apenas era um sentimento insignificante e equívoco, e não chegou a tocar minha alma. Outra vez afoguei-me em excessos e logo afoguei em vinho as recordações do que havia ocorrido.
O gato, entretanto, melhorava lentamente. A órbita do olho perdido apresentava um horrível aspecto, mas o animal parecia que já não sofria. Se passeava como de costume pela casa, como se pode imaginar, fugia aterrorizado ao me ver. Restava-me bastante da minha antiga forma de ser, para me sentir ofendido pela evidente antipatia de um animal que uma vez havia me amado tanto. Mas logo esse sentimento deu lugar à irritação. E então, apresentou-se, para a minha derrota final e irrevogável, o espírito da PERVERSIDADE. A filosofia não leva em conta este espírito. No entanto, estou tão certo de que a minha alma existe, como de que a perversidade é um dos impulsos primordiais do coração humano… uma das faculdades primárias individuais, um dos sentimentos que conduzem o caráter do homem. Quem não se surpreendeu cem vezes nos momentos em que cometia uma ação estúpida ou malvada pela simples razão de que não deveria tê-la cometido? Não há em nós uma tendência permanente, que nos confronta com o senso comum, a transgredir no que constitui a lei pelo simples fato de ser (existir)? Esse espírito perverso apresentou-se, como disse, em minha queda final. E esse anseio profundo que a alma tinha de torturar a si mesma, de violentar sua natureza, de fazer o mal pelo mal, empurrou-me para continuar e finalmente consumar o suplício que havia infligido ao inocente animal. Uma manhã, a sangue frio, passei um laço pelo pescoço e enforquei-o no galho de uma árvore, enquanto as lágrimas surgiam nos meus olhos e o mais amargo remorso torcia o meu coração. E porque tinha certeza de que não tinha me dado motivos para matá-lo, porque sabia que, ao fazê-lo, estava cometendo um pecado, um pecado mortal que colocaria em perigo minha alma até levar – se isso fosse possível – além do alcance da infinita misericórdia do deus mais misericordioso e mais terrível.
Na noite do dia em que cometi esse ato cruel, fui acordado com gritos de “Socorro!” A roupa da minha cama era uma chama, e toda a casa estava queimando. Com grande dificuldade, conseguimos escapar do incêndio minha mulher, um criado e eu. Tudo ficou destruído. Meus bens, meus terrenos foram perdidos e, a partir daquele momento, não tive outra escolha que não fosse renunciar.
Não cairei na fraqueza de estabelecer uma relação de causa e efeito entre o desastre e a ação criminosa que cometi. Simplesmente limito-me a detalhar uma cadeia de fatos e não quero deixar nenhum elo solto. No dia seguinte do incêndio visitei as ruínas. Todas as paredes, menos uma, haviam desmoronado. A que ficou de pé era um divisor, de pouca espessura, situado no centro da casa, onde antes se encostava a cabeceira da minha cama. O reboco da divisória havia resistido à ação do fogo, o que atribuí à sua aplicação recente. Uma multidão apertada havia se reunido ao redor desta parede e várias pessoas pareciam analisar parte dela atenta e minuciosamente. As palavras “estranho! curioso!” e outras parecidas despertaram a minha curiosidade. Ao me aproximar mais, vi que, na superfície branca, gravada em baixo-relevo, aparecia a figura de um gigantesco gato. O contorno tinha uma nitidez verdadeiramente extraordinária. Havia uma corda ao redor do pescoço do animal.
Ao descobrir essa aparição – já que não poderia considerar outra coisa – o espanto e o terror dominaram-me. Mas a reflexão veio em minha ajuda. Lembrei que havia enforcado o gato no jardim adjacente à casa. Quando o alarme de incêndio disparou, as pessoas imediatamente invadiram o jardim: alguém deve ter cortado a corda e jogado o gato no meu quarto pela janela aberta. Sem dúvida, haviam feito isso antes que eu acordasse.